segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

O que não humaniza, intoxica.


 Já tentou pregar utilizando uma chave de fenda? Talvez tenha até se machucado. Se não, ao menos a frustração foi certa.

E nesta linha de raciocínio, podem surgir várias perguntas com um sentido semelhante: já tentou comer isopor quando teve fome? Já cantou uma marchinha de carnaval no meio de uma discussão acalorada? Já ordenhou uma lesma?

JÁ TENTOU TIRAR A HUMANIDADE DE UMA PESSOA?

Não são poucas as vezes que ouvimos ou lemos a respeito de relacionamentos tóxicos. Pois bem, o que é tóxico mata. Aos poucos, o que é pior.

Neste relacionamento, a vítima se vê desprovida de seu principal direito: de humanidade, ou seja, de poder sentir e manifestar o que seu íntimo deseja.

Somos diferentes mas, como humanos, desejamos externar nossas emoções, sermos nós mesmos. Regras de convivência são, concordo, necessárias para uma vida social saudável. Mas impor restrições esdrúxulas e incompreensíveis em nome do que quer que seja é absurdo. 

Tolher a liberdade de uma pessoa punindo-a com um distanciamento social (e não me refiro ao Covid) somente para poder obrigá-la a agir conforme preceitos ou pensamentos impostos. É o marido que corta o cabelo da mulher para que ela, feia, não saia às ruas. Ou que a xinga, a ofende, a humilha. 

Um relacionamento tóxico faz a vítima achar que é a culpada. O mesmo relacionamento que tira da vítima todo e qualquer contato com outras pessoas e faz com que ela só tenha acesso ou contato com aquele ou aqueles que a oprimem, a criticam, não a deixam evoluir.

Você não vai estudar! Você não vai se vestir assim! Você não pode fazer isso! Você não pode pensar desse jeito! Você não pode ter amigos além de mim (ou de nós)! Você não pode nada além do que é o "melhor" para você! E quem diz o que é melhor para você sou eu, que te "amo"! Se não quer fazer o que digo, você não me ama, não ama a Deus, não se ama. Tome meu desprezo. Dane-se sua tristeza.

E a vítima não tem para onde ir, a não ser correr, submissa, humilhada e cabisbaixa, de volta para os braços do algoz que a acolhe e a abraça com a mesma força dolorosa e sufocante de sempre. Ela não tem o direito de sentir, não tem o direito de raciocinar e será novamente punida se discordar.

E ela deixa de ser humana. Pois tem de parar de sentir. Tiram-lhe a Poesia. Arrancam-lhe o sopro divino que a distingue de uma rocha.

Fuja disso. Os primeiros contatos são sempre falando de amor. Sempre. Tudo é bonito no início, sempre! Mas no momento em que você abdica de seu EU, e se afasta de amigos, familiares, de pessoas boas e passa a se tornar dependente... o amor passa a ser possessão. E a vítima começa a acreditar que ser somente espancada em vez de morta é uma prova de amor de seu possessor. Isso é real. Dane-se sua tristeza.

Isso é com relacionamentos. Isso é com amizades. Isso é com sociedades. Isso é com religiões.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Parábola do rio.

 Havia um rio. Limpíssimo. Puro e cristalino, refrescante e atraente, trazendo a pureza intocada desde sua nascente.

Às margens deste rio, no princípio, havia uma placa em que se dizia: "se está com sede, beba à vontade".

E as pessoas que encontravam o rio bebiam e saciavam-se. E voltavam.

Mas, um dia, e ninguém sabe qual dia foi ao certo, alguém observou as pessoas tomando da água do rio e imaginou que se usasse um copo, seria mais fácil. E começou a ser seguido por outros. E surgiram os "copistas".

Mas houve uma discussão entre os copistas e surgiram outros que defendiam que os copos deveriam ter um formato diferente, mais arredondado, e não poderia ser de plástico, mas de vidro, porque a água era pura demais para ser tomada em copo de plástico ou nas mãos (como era feito no começo).

E de discussão em discussão, surgiram vários defensores de várias ideias. Uns diziam que era preciso fazer uma dieta antes de tomar da água daquele rio, outros diziam que somente a água que eles pegavam no rio mataria a sede, outros defendiam que somente os escolhidos podiam tomar da água.

Teve quem cavou um poço do lado do rio para tomar a nova água, acreditando que o rio era falso. E sempre com seguidores fieis acreditando piamente em suas palavras.

Surgiram os "propagadores das águas puras", que distribuíam copos de pessoa em pessoa e afirmavam categoricamente que somente eles possuíam a água que matava a sede. E se a pessoa não se mostrasse digna, eles tomavam o copo e deixavam-na com sede.

Havia quem cobrasse pela água, pelo copo, pela roupa certa para beber. Havia quem criticava os outros bebedores de água, havia quem defendesse com unhas e dentes sua concepção de beber água. Havia discussões acaloradas e filosóficas sobre o conceito fluviológico do beber da água. Surgiram cursos de fluviologia para estudar o rio. Muitos começaram a traduzir a placa que estava na margem do rio para, assim, confirmar que somente seu conceito era o correto.

Todos tentaram inclusive represar o rio, para que somente eles próprios e seus seguidores pudessem beber.

Também havia quem negasse que o rio existisse. Mas que tomava de sua água escondido.

Contudo, quem olhasse de longe, isento dessa discussão toda, via o rio chegando limpo, passando pelo acampamento dos bebedores e saindo sujo do outro lado. Porque toda aquela briga formava muita lama nas margens do rio, sujando-o e ele só voltaria a ficar cristalino mais adiante, longe daquele povo.

Assim foi com o rio. Assim são as crenças humanas.

A água, entretanto, segue pura, gratuita e eficaz em sua essência. Sirva-se.


quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Sincericídio

 Quem fala a verdade, não merece castigo. Descobri que esse ditado popular era balela quando uma professora do primário (que porventura sempre pregou esse ditado popular) perguntou quem havia feito algo na sala de aula. Eu, lembrando das palavras dela, prontamente assumi meu erro. E tomei uma chamada de atenção pública que, para mim, na época uma criança empática e sensitiva, fiquei chateado por uma semana.

Mas a lição que aprendi foi importante. Não sou fã ou defensor da mentira. Mas aprendi que dizer a verdade abertamente e sem ter o devido cuidado pode machucar tanto quanto a mentira.

A sinceridade é uma virtude incontestável. Não se pode negar que uma pessoa ardilosa e desprovida de caráter jamais seria alguém com quem desejássemos nos relacionar em qualquer sentido que seja.

Contudo, quem nunca conheceu aquela espécie de pessoa que diz: "eu falo a verdade mesmo, doa a quem doer". E se mostra um ser intragável, que não mede as palavras, que ofende, que humilha, que envergonha os outros. Que expõe pontos de vista como verdades absolutas e inquestionáveis e se vangloria de falar tudo o que pensa e sente, mesmo que isso cause a derrocada de outro ou até mesmo a sua própria.

Falo hoje sobre o sincericídio. Termo relativamente novo, mas que retrata uma ação muito antiga, inclusive Oscar Wilde escreveu: "Pouca sinceridade é uma coisa perigosa, e muita sinceridade é absolutamente fatal".

Não é porque eu sou um ótimo atirador que preciso provar isso atirando aleatoriamente nas pessoas. Não preciso provar minha sinceridade magoando alguém (ou magoando a mim mesmo). Sim, porque posso ser tão sincero que acabo expondo meus defeitos, minhas incapacidades, denegrindo-me e rebaixando-me diante de outros e isso é extremamente prejudicial. Sincericídio é tóxico.

Fundamental ter empatia. Devemos sim, ser verdadeiros ao expressar emoções, opiniões. Mas devemos acima de tudo preocupar-nos com os sentimentos alheios e como nossas "verdades" irão abalá-los.

Ter empatia não é simplesmente pensar: "Se alguém falasse isso para mim, eu não ficaria chateado". Ter empatia é colocar-se no lugar do outro enxergando com os sentimentos dos outros. Poetas e sensitivos não têm dificuldade em fazer isso. As pessoas mais brutas já precisam trabalhar melhor esse aspecto.

No final das contas, o fundamental desta vida são os relacionamentos, tanto os externos quanto o interno. Agir e se relacionar com alguém para que ambos sintam-se bem e felizes. E, sinceramente, danem-se os conceitos pré-moldados e estabelecidos por convenções fugazes e mutáveis. Fazer sorrir é tudo de que o mundo precisa.